História: O combustível verde que nasceu no Ceará: o projeto pioneiro que antecipou o biodiesel brasileiro
Documentos confidenciais de 1980 revelam como engenheiros cearenses propuseram substituir o óleo diesel por combustíveis de origem vegetal — décadas antes do Proálcool e do biodiesel moderno ganharem força nacional

Em setembro de 1980, em plena ditadura militar, o Serviço Nacional de Informações (SNI) classificou como “confidencial” um projeto ousado que chegava aos gabinetes de Brasília. Tratava-se do “Projeto de Substituição do Óleo Diesel por Óleos Vegetais”, elaborado pela empresa PROERG – Produtora de Sistemas Energéticos Ltda., sediada em São Paulo, e idealizado pelos engenheiros Expedito José de Sá Parente e José Osvaldo Beserra Carioca. O documento propunha algo que soava revolucionário: produzir combustível a partir de óleos vegetais, em substituição direta ao diesel de petróleo — um conceito que hoje reconhecemos como biodiesel
A crise do petróleo e o nascimento de uma ideia
O Brasil dos anos 1980 ainda vivia sob o impacto das crises do petróleo de 1973 e 1979. O barril havia se tornado caro e escasso, e o país importava 80% de todo o petróleo que consumia. O governo federal, sob o presidente João Figueiredo, lançara o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) para substituir a gasolina, mas ainda não havia solução para o óleo diesel, combustível essencial ao transporte e à segurança nacional.
Foi nesse contexto que o grupo liderado por Expedito Parente — engenheiro químico cearense formado pela Universidade Federal do Ceará — apresentou uma alternativa viável. A proposta previa a criação de uma unidade industrial em Fortaleza, capaz de produzir 30 mil litros por dia de um “óleo combustível tipo diesel” obtido a partir de óleos vegetais, como soja, mamona, babaçu e dendê.
O processo químico que gerou o biodiesel
O documento entregue ao então ministro da Aeronáutica, Tenente-Brigadeiro Délio Jardim de Mattos, detalhava um processo de transesterificação, no qual o óleo vegetal reage com metanol ou etanol, sob a ação de soda cáustica como catalisador. O resultado é um éster metílico ou etílico com propriedades muito semelhantes às do diesel comum — e um subproduto valioso: a glicerina.
Segundo o relatório técnico da PROERG, o processo era “simples, instantâneo e de rendimento integral”, podendo operar a 80 °C com metanol ou a 110 °C com etanol. Para cada 30 mil litros diários de combustível, seriam utilizados cerca de 28 mil litros de óleo vegetal, 3.450 litros de álcool e 259 quilos de soda cáustica, gerando ainda 2,6 toneladas de glicerina por dia.
O Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos, foi encarregado de realizar os primeiros testes. Os resultados, descritos como “otimistas”, indicavam que o novo combustível podia ser usado em motores diesel sem necessidade de modificações mecânicas.
Fortaleza no centro da inovação
O plano previa que a primeira planta industrial seria instalada em Fortaleza (CE), com financiamento de 30 milhões de cruzeiros solicitados ao governo federal. A PROERG investiria cerca de 1,2 milhão de cruzeiros próprios. A ideia era simples e estratégica: usar o Nordeste, rico em oleaginosas como babaçu e dendê, como polo de produção de combustíveis renováveis.
O SNI, ao analisar o projeto, reconheceu o mérito técnico e econômico da proposta, mas recomendou cautela. O relatório oficial concluiu que a implantação da fábrica “somente seria conveniente após a comprovação técnica e econômica do processo”. Ainda assim, o documento reforçava a importância nacional da pesquisa e elogiava os responsáveis, afirmando não haver “registros desabonadores” sobre a equipe técnica.
O estudo da PROERG ia além da simples substituição de combustíveis. Ele detalhava cálculos econômicos, fluxogramas industriais e até o memorial descritivo de equipamentos — desde reatores químicos até tanques de estocagem, bombas e caldeiras. O investimento total era estimado em Cr$ 54,8 milhões, incluindo capital fixo e circulante.
O documento também previa que o combustível vegetal teria poder calorífico equivalente ao diesel, densidade de 0,877 g/cm³, viscosidade adequada e total miscibilidade com o derivado de petróleo. Em comparação, o biodiesel moderno, padronizado décadas depois, apresenta valores quase idênticos.
Além disso, o projeto defendia o uso do metanol, mais barato e abundante, em vez do etanol, por motivos técnicos e econômicos. O metanol poderia ser produzido a partir de carvão vegetal, madeira e resíduos agrícolas, o que, segundo os autores, garantiria autossuficiência e baixo custo.
Energia, ciência e política
Os criadores do projeto não escondiam o caráter patriótico da iniciativa. Na carta enviada ao ministro, Expedito Parente e seus colegas destacavam que a tecnologia era “totalmente desenvolvida no Brasil, por brasileiros”, e que o combustível poderia reduzir significativamente a dependência do país em relação ao petróleo estrangeiro.
“As gravíssimas dificuldades emergentes da crise energética representam mais um desafio à criatividade e à capacidade de trabalho do povo brasileiro”, escreveram os engenheiros no ofício confidencial.
O grupo também enfatizava o papel estratégico das oleaginosas brasileiras — especialmente o babaçu do Maranhão e Piauí, o dendê da Bahia e Amazônia e a soja do Sul —, argumentando que o país tinha potencial para abastecer integralmente sua frota com combustível vegetal.
As limitações e o legado
Embora o SNI tenha recomendado prudência e o Ministério da Aeronáutica tenha mantido o projeto sob análise, a unidade piloto foi efetivamente montada em Fortaleza. O combustível foi testado com sucesso em motores diesel convencionais, e o processo foi patenteado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) em 14 de julho de 1980 — tornando Expedito Parente o primeiro inventor do biodiesel do mundo.
Décadas depois, sua patente serviria de base para a formulação do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), lançado pelo governo brasileiro em 2004. Parente foi reconhecido internacionalmente e homenageado como “pai do biodiesel”, título que remonta àquele documento confidencial de 1980.
Um combustível para o futuro
A leitura integral do projeto mostra o quanto a proposta era visionária. O texto já previa, por exemplo, a necessidade de parâmetros de qualidade, padrões de especificação e estudos de comportamento em motores diesel, questões que só seriam normatizadas pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) mais de 20 anos depois.
O relatório também antecipava debates modernos sobre segurança energética, sustentabilidade e inovação tecnológica. Num tempo em que o termo “energia renovável” ainda não fazia parte do vocabulário político, os engenheiros brasileiros já falavam em biomassa, economia circular e independência energética nacional.
Um marco esquecido
O “Projeto de Substituição do Óleo Diesel por Óleos Vegetais”, arquivado como confidencial no acervo do SNI, é mais do que um relatório técnico: é uma peça de história. Ele representa o primeiro esforço concreto do Brasil para desenvolver um combustível limpo, viável e economicamente competitivo.
Em um país que enfrentava inflação alta, censura e escassez de energia, um grupo de cientistas nordestinos ousou imaginar um futuro em que caminhões, tratores e navios brasileiros pudessem rodar movidos pelo que hoje chamamos de biodiesel — um sonho que, quarenta anos depois, enfim se tornou realidade.
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