20 de novembro: Vamos falar sobre racismo?
Não falar sobre racismo não faz com que ele desapareça. Pelo contrário, o silêncio o alimenta, camufla, fortalece suas raízes em estruturas que já nasceram tortas. No Brasil, ele não é apenas um erro isolado, um deslize moral de um ou outro indivíduo; é um sistema. Um sistema tão hábil em sua crueldade que faz muitos acreditarem que não existe. É preciso falar sobre racismo, sim, e com urgência.
Lembro-me de crescer rodeado por risos que nunca foram de alegria. Eram gargalhadas que me arrancavam a humanidade, enquanto me chamavam de “chupim”, “rolo de fumo” ou “saci de duas pernas”. A zombaria era constante, quase uma trilha sonora da minha infância, e os olhos complacentes das professoras brancas apenas aumentavam o peso do silêncio. Era como se minha dor fosse invisível, ou pior, merecida. Mas mesmo criança, eu sabia: não me abalaria. Refugiei-me nos livros, no estudo, no sonho de um futuro que fosse meu.
O racismo, no entanto, não é um monstro que se enfrenta apenas na infância. Ele é insistente, aparece disfarçado de “elogio” ou em olhares de desconfiança. “Ele é negro, mas muito inteligente”, “negro de alma branca”. Frases como essas, que ouvi várias vezes, machucam tanto quanto os insultos diretos, porque carregam a mesma ideia: ser negro, na visão de muitos, não pode coexistir com inteligência, sucesso ou dignidade. A ascensão da negritude ainda provoca incômodo em muitos rostos pálidos e privilegiados.
Recordo-me de um episódio ocorrido há uns quatro anos. Em um encontro de empresários em Cascavel, eu, o “chefe” negro, fui observado com surpresa, quase como se fosse um erro estatístico, por uma pessoa influente, quando descobriu que eu ocupava um cargo de chefia. O desconforto não era meu, mas dele. Do homem que não sabia lidar com minha posição e, talvez por remorso, tentou disfarçar sua surpresa com palavras vazias. Episódios como esse acontecem o tempo todo, nas pequenas interações do dia a dia, perpetuando a ideia de que há lugares onde negros não pertencem.
E as tentativas de apagar a realidade do racismo continuam. Há alguns anos, participava de um churrasco na casa da minha irmã, em Toledo. Alguém, com toda simpatia, perguntou onde eu trabalhava. Respondi que atuava em um jornal diário em Cascavel. Imediatamente ele perguntou se eu era entregador. Ficou espantado quando eu disse que era o “editor-chefe” da redação. Não tenho dúvida que ele associou meu trabalho ao de entregador, tão importante quanto de um editor-chefe, pela cor da minha pele. É nesses momentos, nos detalhes aparentemente inofensivos, que o racismo estrutural escancara sua face. Essa naturalização de que o negro só pode ocupar posições subalternas é uma ferida aberta que, muitas vezes, se disfarça de “brincadeira” ou “desatenção”.
Ignorar ou minimizar o racismo é perpetuá-lo. Não é a ausência do debate que nos livrará de um sistema opressor; é o enfrentamento.
Precisamos de muito mais do que um Dia da Consciência Negra. Precisamos de 365 dias de luta, reflexão e transformação. Precisamos ocupar as manchetes com histórias de avanço, de resistência, de conquistas negras. Não para nos vangloriarmos, mas para lembrar que o racismo não deve ser um assunto do passado. Ele vive no presente e deve ser combatido para não contaminar o futuro.
Falar sobre o racismo é um ato de resistência. É recusar o silêncio que oprime e lutar por um mundo onde as próximas gerações não precisem crescer ouvindo piadas que desumanizam. É reivindicar nossa história, nossa humanidade e nosso direito de ser, plenamente, quem somos.
*Luiz Carlos da Cruz é jornalista e acadêmico de História em Cascavel